quinta-feira, 5 de abril de 2012

A PROSA POÉTICA DE BERNARDINO GUIMARÃES

Um poeta que ama a luz e que busca a solidão - talvez seja esta a definição que Bernardino Guimarães faria de si mesmo, caso lhe fosse solicitado. Há pouco pedi que me falasse de si e ele respondeu: "sou mto isolado, nao gosto de grupos, o meu palco literario é o facebook".

Este poeta português
bem poderia ser confundido com um membro da nobreza, tanto pela sua aparência frágil de pele alva, como pela sua forma melancólica e romântica de perceber o mundo que o cerca. Ele dá vida a tudo que o cerca, dialoga com o mar, com as flores, com a noite, lançando luz sobre a vida, lançando vida sobre a luz.

Nascido em 24/11/60 na cidade de Porto, Portugal, Bernardino Guimarães cursou História na Universidade do Porto, cidade onde reside. Atuando como escritor, cronista e jornalista independente, dedica-se há vários anos ao jornalismo e divulgação ambiental e de temas científicos. Foi fundador e editor da revista Tribuna da Natureza, além de colaborador regular no diário (já desaparecido) O Comércio do Porto.

Foi o fundador e animador de uma rádio local na cidade do Porto nos anos 80. Colaborou, entre 2003 e 2011, com o Jornal de Notícias e Radiodifusão Portuguesa— Antena 1, através de crônicas centradas nos temas do Ambiente. É consultor editorial do programa televisivo Biosfera - RTP2 — e mantém intensa atividade em conferências e ações de educação ambiental. Tem sido presença regular em programas de tv e rádio, geralmente sobre temática ambiental e de conservação da natureza. Tem vasta atividade como conferencista e divulgador e também experiência no setor do ensino. Exerceu funções profissionais de assessoria de imprensa no município de Valongo ( Área Metropolitana do Porto) entre 1989 e 1995. No associativismo ambientalista, foi fundador e dirigente do FAPAS— Fundo para a Protecção dos Animais Selvagens—( 1990) e da Campo Aberto—Associação de Defesa do Ambiente, onde exerceu as funções de presidente da Direção ( 2005-2008) e é atualmente presidente da Assembleia Geral. Para além da actividade jornalística ambiental, desenvolveu gosto e competências em áreas como a Política internacional, os temas históricos, a cooperação para o desenvolvimento e Cultura.

Interessado em Literatura, tem diversa colaboração dispersa em revistas e outras publicações sob a forma de prosa e de poesia. Autor do livro Ambiente— o Falso consenso (2004), a grande parte de seus textos jornalísticos e outros, estão presentes no blogue Peregrino: http://peregrino-bg.blogspot.com
SONHOS

De que matéria são feitos os sonhos? Velha pergunta, mas ninguém sabe a resposta. De bolas de sabão, de nuvens, ou é química pura, alquimia, transformação e desejo? E que importa isso? O sonho não existe - ou é um túnel no sono, uma armadilha, outra dimensão precisamente em cima desta dimensão onde erramos, enganados? O sonho ou faz parte do real ou não existe--é irreal então. Matéria sim, corpo e ...ossos e pele. São restos de caminho traçado em insónia desde os olhos pasmados da infância. Ou anseios que deviam já ser estrelas. Universo pulsa e expande-se em vagas sucessivas de sonhos, espasmos estelares. E na minha noite passeiam cavalos selvagens, se eu quiser. Os sonhos são da esfera do futuro? O seu rasto vem de muito longe e muito fundo. São eles, os sonhos que nos interpretam, somos o que sobra do que eles querem que sejamos. A luz mais linda de uma noite adiada, o astro tão distante que já morreu e brilha-nos agora neste lado do sonho, o arco-íris depois da chuva, o sol na vertical colorindo tudo, meio-dia no mundo que vemos, noite na parte oculta. Há sonhos de dor e sonhos de encanto--por vezes acontece tudo no sonho, misturado.

De que sonhos é feita a matéria? Cada átomo dança um sonho seu. Não haveria mar sem sonhos de peixes e água torrencial descendo do céu, em sonhos de outras eras. O futuro já não é o que era--mas os sonhos persistem, demasiado humanos, morrendo a cada minuto.

Para que perguntas? Definições mais breves: fogueira na praia de noite, mãos de seda e sonhos de maresia breve--a coragem de não morrer sem lutar, a ternura eterna de um gesto, um afago de carne e sangue na areia nocturna, sonhos, ondas, mãos juntas aflitas, sonhos. Matéria.

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SÁBADO

Um sábado como qualquer outro. E único. Belo azul frio no céu--tecto do mundo e dos dias--saio da concha de mim e vejo o mar das ruas. Sei que estão diferentes, que alguma coisa se perdeu ou acrescentou, mas não distingo. Por essa nuvem de não saber, entra o chumbo liquefeito do tédio. Estarei com os meus companheiros que velam pela beleza do mundo. Encontrarei argumentos, debates, entoarei em voz... clara as vitórias que enaltecem e os perigos que estimulam; esforços onde o fogo se acalme e gaste e nada será suficiente, nada será absoluto. Sei que é um dia de fevereiras emergências. Os caminhos são estes, fui eu que os desenhei sem ao menos uma lição de pintura. Entra o gelo pelo coração acima, por vezes, as veias destravam, ignição desesperada na procura. O Nada sempre triunfa, até o velho jacarandá toma as dores de uma dignidade magoada, uma pose de madeiras gastas, mas de pé. Assume, vegetal, a transcendente banalidade do aprumo e da coragem. Contra ele o vento já nada pode e nada quer. Nada vence.

No meio de grandes decisões e rasgos, de alterosas fúrias, de afirmativos propósitos, escondido procuro a periferia de tudo, uma só hora que brilhe, encanto, inocência pristina, talvez um sorriso, um aceno de ternura ao longe com o sol posto rindo-se da ousadia, ou olhos impossíveis, na neblina do passado ou na pálida cinematografia de um sonho a cores. Nada é real, Nada fica.

Um sábado como nenhum mais.

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DESERTO

Dizem, o deserto é puro e limpo, seco, não nos nos mente. No deserto desenharam-se todas as estrelas no céu nocturno, de brilho incomparável. O deserto é grande, tão grande que nem distâncias tem. E o que os nossos olhos vêem de desolação e vazio, na verdade é solidão e liberdade. Por isso são fortes e indomáveis as raças do deserto. São deslumbrantes e misteriosas as grandes caravanas que dão sentido à palavra viagem, à palavra caminho.

Junto a mim queria a entrada no grande deserto da noite e dos astros acesos, das estrelas-guias, dos faróis do espaço asperamente mineral, sinal do infinito. Porque a desolação me toca e me fere sem deserto onde faça sentido--e até a solidão é uma mentira nestas cidades que pulsam luzes baças e encruzilhadas sem destino. Seja a noite o deserto com as multidões em sonos rápidos, agitados e desenlaces febris. Os meus olhos imitarão o falcão-peregrino que atravessa horizontes em busca de reinos capazes de merecer sonhos antigos. Sonhos que desmoronam, ilusão, miragens de sede, sem deserto, sem as vastidões solitárias onde, dizem, mora a hipótese do absoluto. Onde nada nos mente. Onde nada existe.

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ESTADO DE GRAÇA

Estado de graça. E estado de sítio. Este vento que quase traz a Primavera no colo, este frio que se inflama nas veias. Esta vertigem de sempre sonhar alto. De voar por cima dos muros. Esta memória das estrelas, este Nilo na memória anterior, ficcionada, este Douro nos dias. Não me deixes as mãos vazias e os olhos sem asas. Não fiques sempre nesse lado da viagem, nesse hemisfério contrário. Não me digas que voe para além do tempo. Estado de raiva. Este vento que agita bandeiras dentro da tristeza.
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INSTANTE


Disse baixinho amo-te e escondi-me nos teus cabelos.
Não sei se o instante me ficou nas mãos. A praia era uma sala vazia imensa. Havia gaivotas como estrelas. A música era de ondas e de sal, de búzios e de água dos murmúrios. A tua pele subitamente na minha pele o teu tempo no meu tempo tudo corria e no entanto se detinha; tinha um coração parado a olhar-te e a nudez do espanto e da ternura crua, derramada no perfume dos teus olhos onde as algas moravam. E vi— nesse único, definitivo instante — que éramos uma única fogueira, levemente triste como o vento morno e ardíamos no mesmo sopro irrepetível e terrível.

Confundiam-se as mãos ao darem-se aflitas e urgentes, o céu de areia azul e a bandeira do teu país distante envolvia-te, tua geografia de beleza e de graça. Acho que me encontrei ao recear tanto perder-te.

Sei que os nossos olhos misturaram alegrias e cansaços e que o teu corpo me defendeu do sol, ou o meu fogo errante e inquieto achou o centro da terra naquele recanto de outono quente.

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